domingo, 26 de maio de 2013

A classe média à beira do precipício


A "crença" do enriquecimento facilitado pelas ofertas de crédito fácil espalhou-se pelo mundo para dividir o histórico proletariado que constitui a força de trabalho necessária para manter a produção das nações independentes. Pescados com a isca dos princípios individualistas lançados pela estratégia da elite exploradora, aceitaram as ofertas de empregos precários, com mais status social e menor esforço físico. 


Os créditos facilitados para criar uma imagem de ascensão à invejada classe média criaram uma distância social em relação aos antigos colegas de trabalho, e, aos poucos levou-os insensivelmente a copiarem o comportamento e os vícios da velha classe média, que nascera de uma nobreza empobrecida e se fixara junto ao poder do Estado graças à formação intelectual e profissional proporcionada pelas conquistas democráticas mundiais da humanidade.

A mentira hoje campeia no mundo globalizado, difundida pela mídia e a publicidade paga pelo setor financeiro. Os que trocaram as conquistas históricas das leis trabalhistas e dos princípios democráticos próprios dos que permanecem como a força produtiva nacional, e os valores éticos e humanistas da solidariedade que alimentam a consciência de cidadania, aderem insensivelmente ao oportunismo ganancioso e aos preconceitos de superioridade social discriminatórios. Aceitam a "crença" moderna que desorganiza famílias e associações populares onde é cultivada a filosofia humanista da igualdade e fraternidade.

Entraram de cabeça no consumismo de produtos da moda e das mensagens ideológicas que impregnam a cultura de uma classe dominante. Endividaram-se seguros de que o planejamento e a gestão apregoados garantiriam uma existência confortável sem as privações que sofreram na infância. Não sabiam que o poder financeiro criara esta ficção como um colchão de ar para se defender das crises do sistema e que lhes lançara uma escada de cordas onde os degraus são "prémios pontuais", corrupção, serviços políticos em troca de votos, promessas e mais promessas. 

De um momento para outro, diante da crise, cortam empregos e salários, sobem taxas de crédito e impostos, impõem a austeridade, atiram a classe média na miséria, com o pretexto de salvar a economia nacional como se fosse um ato heroico e patriótico imprescindível. A mentira é moeda corrente para a elite dominante. Desculpada como "segredo de Estado", dá o dito por não dito, cria novas leis, conduz o país a um "regime de exceção" onde tudo fica subordinado aos interesses financeiros dos exploradores. A nova classe média torna-se lumpen sem capacidade de sobreviver como proletários.

Enquanto assistimos a este capítulo da história do sistema capitalista na Europa dominada pela Troika - Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e governos nacionais subordinados - os empresários europeus elogiam, através da sua mídia, a "pujança" da economia brasileira que oferece um enorme mercado consumidor de produtos importados! Dizem eles que são "mais de cem milhões da classe média"! De ficção em ficção, abrem caminho para que as empresas multinacionais produzam em Portugal onde a "austeridade" reduziu os salários e acaba com os direitos trabalhistas, e que no Brasil uma classe média que aluga a sua imagem de consumidora abastada através de créditos bancários vai sustentá-las. 

As consequências, regidas pelo imperialismo representado hoje pelos dois parceiros - FMI e União Europeia - apontam o precipício: Portugal, e outros países pobres da Europa, substituem a sua produção, raiz do seu desenvolvimento, pela transformação de produtos estrangeiros, e o Brasil compra o supérfluo (sem investir nas suas forças produtivas) para girar o dinheiro das altas finanças destruindo a consciência de classe e de cidadania de pobres trabalhadores vestidos de rico.

Esta realidade, da crise do sistema capitalista, é planetária. Para isto foi destruída a experiência socialista da União Soviética. No entanto, há contradições valiosíssimas para que a luta revolucionária prossiga com êxito: países que resistem mantendo os seus princípios socialistas - China, Cuba, Vietnã, Laos e Coreia do Norte - e todos os países em desenvolvimento que afirmam a sua independência negando submissão aos programas imperiais - além dos Brics, a Venezuela levantada por Hugo Chaves, que abriram caminho para oferecer uma alternativa progressista à catástrofe capitalista. No Brasil foi aberta por Lula uma fase histórica de construção da democracia com a participação popular. Temos assistido nesses 10 anos de ação governativa, segura e corajosa, a resistência férrea a todas as formas de sabotagem interna e pressão externa para impedir a consolidação da democracia por uma oposição que o povo aprendeu a repelir. Este é o caminho fora das "crenças e ilusões" criadas para o imperialismo ver e tirar proveito.

Em todos os países da Europa, com a imposição da austeridade que deflagrou a miséria e ameaça liquidar as conquistas dos direitos no trabalho e da democracia nas instituições dos Estados, crescem as manifestações populares. Os sindicatos viram-se fortalecidos como organização não só da massa trabalhadora, mas também dos desempregados e dos aposentados e pensionistas que formam as suas respectivas associações. Em uma sequência de marchas de protesto contra as medidas ditatoriais da Troika, greves contra o desemprego e a cedência de recursos empresariais a multinacionais, manifestações para reunir toda a população oprimida, surgem novos aderentes vindos de setores antes acomodados na sua condição de classe média estável e até mesmo de igrejas e partidos à direita. Jornalistas da grande mídia filmam e recolhem depoimentos para os seus arquivos que nem sempre são vetados por seus patrões. Os sindicatos da Polícia e as associações de militares, que também fazem manifestações próprias, avisam os governantes que não terão condições de garantir a segurança se as razões de conflito forem insuportáveis.

Por motivos opostos ao dos empresários "exportadores de ilusões", os trabalhadores da Europa acompanham o desenvolvimento das forças democráticas no Brasil e em toda a América Latina. Não cobiçam a situação da classe média, "de serviço", que hoje aparece como "cem milhões de consumidores", mas sim a liberdade democrática que estabeleceu uma relação direta entre todo cidadão que lute por um país melhor e o governo eleito pelo povo. 

Reconhecem que esta condição é a única que oferece garantia de que as históricas conquistas dos trabalhadores, como os direitos humanos e a democracia, sejam defendidas incansavelmente. Veem na união entre as nações latino-americanas - Celac, Unasul – que o objetivo é a solidariedade para que cada uma seja independente e desenvolva as suas forças produtivas, não para criar um governo único que comande o poder financeiro, como a UE, contra os interesses normais dos povos.

A crise capitalista é planetária, mas a unidade entre os povos trabalhadores também o é, além de ser mais antiga e perene como a humanidade.

(*) Cientista social, militante comunista, colaboradora do Vermelho

domingo, 12 de maio de 2013

O Estado corporativo impede a democracia



Marx e, depois, Lenin já escreviam, há um século, sobre a necessidade de destruir o Estado burguês para a plena realização do processo revolucionário. 


Álvaro Cunhal (em 1967), definindo o Estado como "uma organização especial de poder", "um poder especial de repressão", "aparentemente acima da sociedade e das classes", explicita a situação em que se encontra a máquina do Estado, formada pelas classes sociais dominantes para sobrepor-se a um Governo revolucionário, "sabotando a aplicação dos decretos e decisões do Governo, seja forçando remodelações ministeriais seja, ainda, inspirando, apoiando ou servindo golpes de palácio ou putschs".

A distância no tempo e as novas fórmulas políticas geradas pela história da democracia não invalidaram as análises científicas feitas pelos ideólogos revolucionários. Hoje, no século 21, constatamos a prepotência com que são levantados no aparelho de Estado todo o tipo de obstáculos à defesa dos direitos humanos e de cidadania que a democracia estabelece, pelo uso burocrático de normas e leis como armas de um poder repressor e violento. 

As instituições do chamado Estado Social utilizam os mesmos fundamentos jurídicos que foram criados sob a égide das conquistas democráticas, não para desempenhar o papel de organizador da sociedade voltada para o bem estar social, mas para defender o Estado contra os interesses e necessidades dos cidadãos. O poder é o do capital e os programas são elaborados com critérios meramente financeiros. Nada têm de social, de democrático, de humano.

Ressurgem do passado funcionários aparentemente inertes, que represavam as suas mágoas e recalques pessoais, e agora são inspirados por líderes da repressão que falam na "austeridade" para impor o desemprego e os cortes nos rendimentos pagos pela Segurança Social. Atacam primeiro os mais indefesos: os incapacitados fisicamente, que recebem pensões por doença ou velhice, os que adquirem "doenças profissionais", e os que suportam encargos familiares derivados das várias formas de empobrecimento, criadas pela "austeridade", que só beneficia o sistema bancário. A recolha das taxas durante toda a vida do trabalhador para constituir a sua aposentadoria fica esquecida, e o idoso ou inválido é tratado como um parasita.

Com autoritarismo e, muitas vezes, violência psicológica, cortam pensões, suspendem baixas médicas, cobram multas, espezinham quem está fragilizado e o levam à miséria. Vingam-se da História que os manteve calados durante um período de regime democrático, e reagem com uma forma psicótica de sadismo contra a humanidade. Tornam-se, assim, cumpridores entusiastas de um poder ditatorial que usa o disfarce "democrático" das leis estabelecidas como fórmulas neutras. Estes "instrumentos da ditadura" afastam-se dos colegas de trabalho que mantêm a dignidade procurando soluções adequadas aos utentes, tratando com respeito os cidadãos prejudicados e aconselhando caminhos alternativos que poderão encontrar junto a outras instituições ou movimentos sociais que o apoiem.

Este "poder" que cria programas de "austeridade" tanto pode estar no Governo como apenas no controle financeiro de um país. Na Europa de hoje está representado pela Troika e seus acólitos nacionais; em outros continentes "em desenvolvimento" corresponde aos tentáculos do polvo imperial. Os ministérios sob controle direto deste 
"poder global" são o de Finanças e o de Solidariedade Social, por onde circula o capital social e a maioria da população. 

Os governantes que executam as políticas globais podem manter uma fachada democrática através de discursos recheados de falsas promessas e informações contraditórias. A publicidade é aplicada de maneira criteriosa para que a linguagem e o comportamento dos altos mandatários pareçam moldados pela democracia e pela cultura do seu povo. Dessa forma, não assumem o exercício da ditadura, que é real e parece ser "legal". Tal conduta mina a mentalidade popular que tende a aceitar uma "escravidão suavemente justificada" em nome do seu patriotismo.

Essas ditaduras procuram não usar as Forças Armadas e a Polícia para impor a sua vontade, o que era habitual no passado criava um clima de terror pela repressão violenta. Pretendem parecer mais humanizados, mas uma forte razão para abdicarem do uso da força física institucional contra os cidadãos deriva da própria evolução das corporações armadas, no sentido de garantirem a estabilidade social com a mesma responsabilidade que defendem o Estado e o Governo. Hoje, a consciência dos profissionais da segurança inclui a de cidadania, e os leva a criar os seus próprios sindicatos e associações representativos, para a defesa dos seus direitos de cidadania e de trabalhadores.

Os povos europeus têm uma memória histórica de opressão, mesmo quando participaram das viagens de descoberta de novas terras no século 16 e da colonização dos países do Terceiro Mundo. Sacrificaram a sua estabilidade no país de origem, separaram-se dos seus familiares, arriscaram a vida para abrir um caminho desconhecido, enfrentaram povos aguerridos, iniciaram nova vida em regiões adversas, morreram de fome ou doenças sem qualquer proteção e sem receber remuneração oficial. Os benefícios conquistados em nome da pátria foram para a coroa, para o sistema financeiro, para grandes empresários que permaneceram nas cidades, servidos por escravos. Os governos modernos que exercem a ditadura com repressão visível ou disfarçada reavivam a história passada como se fosse uma fatalidade.

Como despertar uma consciência dos direitos humanos e do valor da cidadania? 

A Revolução dos Cravos, que implantou o regime democrático em Portugal, não foi um episódio passageiro. Chegou-se ao derrube da ditadura pelo Movimento das Forças Armadas depois de um processo de resistência política, durante muitas décadas conduzido pelo Partido Comunista Português (PCP) e com o apoio dos setores democráticos e patrióticos de toda a sociedade portuguesa. Por outro lado, as guerras de libertação desencadeadas na África pelos partidos de esquerda revolucionária conquistaram o apoio de organizações internacionais em defesa dos direitos humanos, da autonomia nacional e da libertação dos povos, considerados como base da democracia e do respeito pela cidadania. A ditadura fascista e colonialista em Portugal perdeu o apoio que recebera de Hitler e que fora mantido pelos aliados ocidentais. Situação semelhante ocorreu na Espanha e em outros países europeus.

A luta a favor dos povos e dos princípios democráticos é um processo histórico em curso, com mais de 200 anos de desenvolvimento mundial, que já libertou a humanidade de vários grilhões, do atraso cultural aos preconceitos que estabeleciam obstáculos à igualdade e ao respeito humano pelas diferenças raciais, religiosas e políticas. A escravidão foi banida das sociedades e as instituições foram criadas para que existam Estados de Direito em todas as nações. 

A Ditadura do Capital é um episódio antinatural na história da humanidade, decorre da crise do sistema para manter o poder financeiro de uma elite acima do poder social, ou seja, este é o processo histórico dos exploradores. 

Cabe aos povos lutarem unidos pelos seus direitos com a consciência dos seus valores que dignificam a existência.

Zillah Branco é socióloga, militante comunista e colaboradora do Vermelho