sábado, 19 de novembro de 2011

O difícil processo de pacificação no Brasil

Vivemos um momento histórico em que as autoridades brasileiras despertam para a necessidade de, com realismo e humildade, reconhecerem que herdamos de um passado oligárquico e autoritário, o convívio com o crime como forma de poder social. Tanto nas altas esferas institucionais, como no dia-a-dia das populações mais pobres, a corrupção e a pressão armada desempenhavam o papel determinante na escolha das vias institucionais disponíveis ao desenvolvimento cidadão. Este “poder paralelo” limitou a evolução das instituições nacionais apesar de desenhadas segundo modernos conceitos jurídicos e técnicos que permaneceram à espera de fiscalização para a implantação de reais condições democráticas na vida social e econômica. A ética presente na cultura brasileira teve bastante força para garantir que uma significativa população, nos vários níveis sociais e independentemente dos  recursos socioeconômicos disponíveis, não se deixasse engolir pelo poder do crime e resistisse por princípio ético, na defesa de uma política democrática  que é hoje referência na ação do Estado e no comportamento cidadão.

Temos assistido ao desmembramento de redes de corrupção que penetram na estrutura de poder político e institucional nacional e, ao mesmo tempo, à reconquista de territórios antes dominados pelo “poder paralelo” nas favelas do Rio de Janeiro. Neste caso, do combate ao controle social exercido por grupos criminosos sobre populações de baixa renda, tem sido melhor sucedido por não atingir personalidades de origem social mais alta ainda respeitada como “elite”.

O projeto de “pacificação” conduzido por J.M.Beltrami como Secretário de Segurança do Estado do RJ, tem demonstrado a eficácia de um plano de ação bem fundamentado científica e estrategicamente. Com assessoria de professores especializados nas áreas militares e das ciências humanas são estudadas as peculiaridades da sociedade que sofre o domínio do “poder paralelo” e, ao mesmo tempo, as condições de formação dos próprios policiais que também são alvos de corrupção pelas redes criminosas além de terem sido formados como agentes de repressão – contraditório com o conceito de democracia e cidadania - pela escola tradicional. A ideia de pacificação é válida também para dotar os agentes policiais de um conceito da sua função democrática de levar a segurança pública a todos os cidadãos ao invés da repressão anteriormente exercida em nome de um Estado da elite dominante.    

Como explica Beltrami, o plano de criação das UPP – unidades policiais de pacificação – abre janelas para um novo entendimento da função da segurança pública: unifica as várias forças e serviços de que o Estado dispõe a nível estadual e federal (policias civis e militares, serviços de inteligência, forças armadas nacionais, em permanente contato com a administração pública também dos três níveis) e age na reocupação pública de territórios que estavam sob o controle do crime organizado. É a partir desses objetivos fundamentais, que se completarão no curso das operações com o aprisionamento dos infratores, de armas e munições além de produtos que são comercializados na prática de crimes (drogas, falsificações várias que lesam o controle fiscal, armas, etc), que o território será devolvido aos seus moradores e aos serviços públicos necessários. O “poder paralelo” que há dezenas de anos está instalado nas favelas pela via dos traficantes de drogas impera como “mecenas” e “protetor”, pelo que recebe impostos aplicados a todos os moradores, substituindo as estruturas do Estado que não podem penetrar naquela área. Este convívio da população com o império do crime, ao nível da residência e do trabalho dos cidadãos, cria um muro em relação a todo sistema político, econômico e social do país que sobrevive na informalidade e na ilegalidade. Ao nível do crime organizado o convívio não é tão claro e exige um fator de “impunidade” tolerado pelas instituições do sistema judiciário que será maior ou menor conforme a pressão política venha de fonte autoritária ou democrática.

Em alguns momentos da história do Brasil, o vínculo entre o nível superestrutural e o individual do crime organizado tornou-se visível pela ação direta de políticos comprometidos pessoalmente com os cartéis do crime dentro e fora do país, que controlaram as estruturas estaduais e municipais. Os relatos que frequentemente são feitos por ex-agentes da CIA, por exemplo, desvendam essas ligações revelando os nomes das personalidades políticas nacionais com quem trabalharam anteriormente.

A realidade das UPPs e sua evolução

No ano 2010 foi organizada a ocupação policial da favela do Alemão, com grande cobertura pela mídia nacional e internacional, propiciando debates com maior e menor informação e com objetivos tanto de respeito e solidariedade com os responsáveis pela ação no terreno como de dúvida e oposição. Já existia mais de uma dezena de UPPs criadas anteriormente, cuja experiência provocava admiração ou repulsa, conforme a análise dos fatos fossem consequentes com o conhecimento do processo de desenvolvimento previsto ou resultassem de ignorância ou preconceito. Os conceitos relativos ao valor e função das polícias naturalmente derivavam da história passada, quando se tratava de uma instituição repressora a serviço da elite dominante. Nem todos os comentários revelavam confiança na alteração imposta pelos comandos da segurança pública no Rio de Janeiro no sentido de alterar o comportamento dos seus agentes agora para apoiarem democraticamente o cidadão contra o domínio do crime organizado. E, realmente, ocorreram arbitrariedades praticadas por policiais contra os moradores que foram sendo denunciadas ao comando que procurava isolar os maus agentes, até que se descobriu uma brecha aberta na UPP onde penetrara a corrupção que manchou a sua presença na favela do Alemão.Este caso foi investigado de maneira competente pelo comando da Segurança Pública e punido exemplarmente. Serviu para aprofundar o diálogo interno das forças policiais e contou com o apoio da maioria na sociedade contra aqueles que se deixaram corromper manchando a imagem da corporação. 

Dialeticamente, este incidente, assim como outros que também revelaram vínculos entre bandidos e policiais (como foi o caso do assassinato da juiza … de Niterói), abriram a chaga da infiltração do inimigo tanto pelas formas de corrupção como pela formação autoritária que ainda marca a escola policial, o que permitiu uma ampla discussão com transparência, na sociedade, sobre os problemas fulcrais da ação pacificadora, o que levou o comando a fortalecer a ação saneadora que já havia sido iniciada para mudar o comportamento dos seus agentes.

E foi no bojo deste processo de seleção e educação das polícias, que se realizou a 19ª ocupação na maior favela da América Latina, formada por Rocinha, Chácara do Céu e Vidigal, onde residem mais de 70 mil habitantes, que trabalham e estudam na zona sul do Rio, e circulam cerca de 200 mil sob as ordens do crime organizado com os maiores pontos de venda de droga da região.

O plano de ocupação revelou o amadurecimento da ação anteriormente praticada na favela do Alemão: com maior controle de todas as entradas e com o apoio integrado das instituições federais e estaduais, não houve confrontos armados, os chefes locais do crime foram detidos no dia anterior e presos, a população colaborou pelo “disque-denúncia” indicando locais onde foram encontradas armas, drogas, veículos roubados, o que permitiu a entrada dos serviços públicos que deram início ao saneamento e construção de infra-estrutura pelo Estado. A percepção foi, mais que nas UPP anteriores, de que o território que estava há 40 anos sob o controle do crime organizado foi ocupado pelo Estado dos cidadãos.

É uma realidade que merece acompanhamento cuidadoso porque o Estado anterior trazia algumas formas de opressão – como a cobrança de elevadas taxas sem a correspondente prestação de serviços necessários a comunidade e uma total falta de segurança social que permitiu o surgimento das ilegais “milícias” mantidas por antigos policiais corrompidos pelo sistema do crime organizado. É uma situação nova que apresenta um novo Estado, democrático. A responsabilidade será tanto dos governantes como dos cidadãos que exigem a democratização plena nas instituições.

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