quinta-feira, 20 de junho de 2019

O jovem Marx

Os disfarces subtis da escravidão moderna

(Publicado no Portal Vermelho)

Vivemos um tempo de afirmação do domínio capitalista com a imposição de formas de exploração
que reduzem os trabalhadores à condição de escravos. Os Estados ditos democráticos jogam
com as leis de modo a solapar os direitos antes alcançados por movimentos sindicais e
manipulam as informações através da média que divulga as "fake news" como verdades sempre
convenientes à elite no poder. Para aprimorar a (de)formação da consciência dos cidadãos,
justificam a redução dos recursos para salários e prestação de serviços sociais alegando o "dever
de honra" do país saldar as dívidas contraídas com os bancos credores!. Além das mentiras que
ocultam o desvio dos recursos nacionais (capitalizados como lucros por uma minoria), criam uma
"falsa moral" que vai completar a ignorância da realidade, transformada em educação social que
aliena a consciência dos indivíduos.
A semente transformadora do sentimento humano radica no incentivo ao egoísmo para que, ao
ficar alienado da sua condição gregária natural, a pessoa deixe de se preocupar com o bem-estar
dos que compõem a sociedade, apenas cuidando da forma de relacionamento para utilizar os
serviços que lhe prestam como escravos, clientes ou protetores. Teoricamente o Estado
capitalista deve assegurar essas condições de bem-estar aos cidadãos (egoístas ou não), mas as
instituições oficiais tendem sempre a considerar apenas os privilegiados da classe dominante que
pagam ou mandam.
Em campanha eleitoral a elite social-democrata e demais partidos de direita vestem-se de
democratas ou de generosos irmãos de caridade e repetem discursos sobre o Estado de
Direito, a igualdade entre cidadãos e o respeito pelas diferenças étnicas, de género, de opções
religiosas, políticas ou sexuais, enquanto anunciam grandes projetos de desenvolvimento dos
serviços sociais de saúde, ensino, previdência, transporte e habitação social, para os quais
precisam de investidores para privatizar os serviços que o Estado tem a obrigação de oferecer a
todos os cidadãos. Tratam as questões sociais como negócios que fazem crescer as dívidas que
o povo terá de pagar submetido a um regime de austeridade.

A história evolui e transforma

No século XVIII, como resultado do desenvolvimento filosófico e científico na Europa, germinava o
pensamento humanista em busca da justiça social (esteve na base da Revolução Francesa que
condenou as aristocracias governantes e delineou o Estado democrático), assim como na origem
das várias correntes religiosas que orientavam as investigações filosóficas e a formação cultural
dos povos.
Naquele século os trabalhadores e os pensadores humanizados despertaram para a descoberta
de que a exploração que escravizava uma maioria de seres e enriquecia uma camada privilegiada
não poderia continuar a ser uma fatalidade imposta por lei divina. As correntes religiosas
confrontavam-se e as observações metódicas da natureza por estudiosos, desenvolvia a
curiosidade científica libertada das proibições clericais e do medo de assumirem a condução do
próprio pensamento. O século XIX leva os estudiosos a recuperarem o conhecimento e as
indagações feitas na antiguidade para serem aplicadas aos novos tempos, e os trabalhadores a
serem colectivizados na nascente indústria e nas cidades onde ficam amontoados ao serem
expulsos do campo. O diálogo impõe-se como compensação e revela identidades e diferenças
que suscitam interpretaçōes racionais e gestos afetivos de solidariedade.
A guilhotina era insuficiente para acabar com os donos do poder político, económico e social, e a
miséria agravada nas casas insalubres das cidades exigia soluções científicas e técnicas. O
sistema capitalista era organizado de modo a deixar o trabalhador sobreviver para produzir nas
suas fábricas, manter em ordem as cidades, servir nos exércitos e junto às famílias de classe mais
elevada, deixando os poderosos acumularem a riqueza e gozar a vida prazerosamente.
Os objectivos da Revolução Francesa apontavam caminhos para libertarem os cidadãos das
misérias e da ignorância que constituíam as peias do seu desenvolvimento. A promoção dos
princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade exigia a superação do egoísmo naqueles que
tinham privilégios de vida e de formação.

Os contestatários criam associações

O autor do filme "O Jovem Karl Marx", Raoul Peck (que fora premiado em 1993 ao apresentar o
filme sobre Lumumba "Eu não sou o seu negro"), nasceu no Haiti, onde foi Ministro da Cultura,
migrou para o Congo e estudou nos EUA, na França e na Alemanha. Neste novo filme
desenvolveu um projeto para apresentar o lado humano de quem hoje é conhecido como um
gênio intelectual e criador de uma doutrina imbatível sobre o sistema capitalista - o marxismo -
que é estudada até pelos seus oponentes por expor minuciosamente os fundamentos da
organização capitalista que domina o relacionamento internacional mundial mesmo com países
socialistas ou que mantêm um regime feudal.
Procurou destacar na história pessoal - de Marx, Jenny, Engels e Mary Burns - o caminho seguido
por jovens imbuídos do desejo de transformar o mundo com a superação da ignorância e das
injustiças, revoltados mas firmes nas suas ideias, sem medo de enfrentar os debates, que não
medem palavras mas ouvem o outro, abertos à discussão, que radicalizam mas fazem a sua auto-
crítica ao conhecerem a realidade em que vive a humanidade. Apresenta as semelhanças com
outros jovens que a história vai produzindo, com idêntica responsabilidade social e princípios
éticos, que desenvolvem a capacidade de pensar e conhecer a realidade do seu
tempo para participar na luta pela transformação mundial. Destaca os traços de caracter e de
formação ideológica de quem foi tornado mito por muitos, que existe na realidade vivida pela
humanidade desde os seus primórdios nas variadas condições históricas produzindo líderes e
gênios intelectuais, como um exemplo a ser conhecido e seguido.
O primeiro texto reflexivo de Marx, aos 18 anos, é sobre a escolha do caminho profissional que
"exige uma ponderação sobre os objetivos do próprio desenvolvimento que assegure o respeito
pelos princípios com que foi formado e o interesse maior de realização, sem incorrer em decisões
apressadas, entusiasmos fugazes, ambições mesquinhas e egoístas". Busca a essência da sua
própria definição como membro da humanidade e investiga a realidade e a história da sua
formação. Chega a uma primeira conclusão: de que pretende forjar em si um lutador competente
para transformar a sociedade de modo a que todos sintam o bem-estar necessário ao
desenvolvimento de cada um.
Nessa altura, ainda recém saído da adolescência, revela ter na sua consciência a crença no divino
e os princípios morais fundamentais das religiões cristãs, herdada da cultura de seu pai - um
advogado judeu tornado protestante, estudioso da filosofia francesa na época dominada por
correntes humanistas em busca de caminhos abertos pela Revolução Francesa e pelas ações
renovadoras de Napoleão (até ser derrotado em 1815 pela Santa Aliança encabeçada pelo Czar
da Rússia e o Governo da Prússia). Neste contexto o jovem revela a aspiração de: formar-se
para ser útil à humanidade. "Como podemos reconhecer essa ilusão sem rastrear a fonte
da própria inspiração?"escreveu Marx em 1836.(1)
Descobre no idealismo de Hegel e no conceito de dialética, reforço para assumir convicções
ideológicas de esquerda ao serviço da emancipação social da humanidade, abrindo caminho para
a compreensão de teorias não religiosas e revolucionárias que vão ser aprofundadas quando
conhece, em 1843, a obra de L.Feuerbach sobre "A essência do Cristianismo" onde a crítica à
teologia conduz ao materialismo.

À medida em que o estudioso jovem consolida a sua percepção intelectual teórica, vai
descobrindo divergências com os grandes professores em que se baseia, quando mergulha no
conhecimento da realidade em que vive a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo que analisa as
suas próprias características culturais, que têm consonância com os autores que admira, percebe
que não correspondem às condições de vida e formação da classe trabalhadora e dá um passo à
frente criticando as raízes das divergências. Está sempre preocupado em não seguir um
"entusiasmo repentino" sem conhecer as causas. "Nós não analisamos, não consideramos os
seus encargos totais, a grande responsabilidade que nos impõe, a vimos apenas a uma
grande distância; e a distância é algo enganoso."
Com tais princípios, Marx aceita como natural os sacrifícios do seu bem-estar para estar junto aos
"seus iguais", e aponta os erros do socialismo utópico, assim como dos anarquistas de esquerda,
que formam associações onde realizam debates intelectuais sem agir pela transformação
concreta da sociedade que só seria possível pela ação dos próprios trabalhadores contra
os que exploram e detêm o poder.

O filme "O Jovem Marx" mostra a evolução dos jovens comunistas

Utilizando a correspondência pessoal entre Marx e seus amigos, para além de estudar a extensa
obra teórica posteriormente escrita, Raoul Peck abre ao espectador uma via que lhe permite
mergulhar nas figuras humanas que enfrentaram as suas próprias contradições na vida para
debaterem conceitos teóricos confrontados com os detalhes da realidade que os cerca.
Os diálogos entre Marx e Jenny revelam a cumplicidade e o amor profundo que os uniu, sendo ela
herdeira de uma família aristocrática ligada ao governo da Prússia. Colega de Marx na escola e
também humanista e rebelde, reflete o crescente movimento feminista na Europa. Casa-se com "o
judeu converso", como referia rindo a opinião do seu irmão ligado ao governo da Prússia, e
enfrenta uma vida difícil, com frequente miséria, para alimentar e tratar da saúde dos filhos sem
abandonar a participação política. Juntos suportam as perseguições desencadeadas pelas elites
governantes, e participam de acalorados debates ideológicos com pensadores da esquerda
burguesa e socialistas utópicos na França, na Bélgica e em Londres, depois de terem sido
expulsos da Alemanha.
Com o entusiasmo de jovens que dão a vida por uma causa em benefício de toda a humanidade,
vão deixando de lado as crenças abstratas, os privilégios de classe, a vaidade egoísta, a noção de
superioridade herdada de uma elite econômica e intelectual, os objetivos individualistas. Estudam
a realidade social com recursos da ciência para evitarem os erros de interpretação, buscam a
linguagem simples e direta dos trabalhadores e incentivam a participação deles nas reuniões para
ficarem integrados no movimento de ideias e ação transformadora.
Junto a eles, como grande amigo, segue Engels, filho de um rico proprietário de indústria em
Londres, onde trabalha junto à administração. Mary Burns - operária na sua empresa, lidera uma
greve em defesa da colega que perdeu os dedos na máquina têxtil, e é demitida pelo patrão.
Engels protesta e é admoestado pelo pai. Sai e vai ao "gueto" dos trabalhadores nos subúrbios de
Londres onde descobre e se apaixona por Mary. Assim detona o precário equilíbrio da familia
patronal.
O jovem Engels já era um estudioso da economia e autor de um texto sobre a exploração da mão
de obra de mulheres e crianças tornados escravos na indústria nascente na Inglaterra, que Marx
já havia lido com admiração. Passam a estudar juntos e, com o apoio de Jenny e de Mary que
participam na discussão sobre as realidades opostas da aristocracia e da classe trabalhadora,
constroem as bases teóricas da luta de classes que é sintetizado no "Manifesto Comunista",
publicado em 1848, escrito em linguagem simples e objetiva.

A dinâmica geradora do "homem novo"

Os debates provocados por Marx e Engels com os intelectuais humanistas, utópicos ou
anarquistas, que representavam a esquerda na época e promoviam as associações para onde
afluía o proletariado que buscava formação teórica para a sua consciência espontânea de rebeldia
contra a classe exploradora, propunham uma visão objetiva da realidade sem a versão caritativa
e protetora dos que defendiam a igualdade entre todos "porque somos irmãos". Aí residia o
problema que dava origem ao conceito social-democrata, proposto como oferta de condições de
vida para a classe trabalhadora sobreviver e ser explorada por uma elite intelectual detentora do
poder político e económico a que chamavam "democracia".
Marx e Engels lutavam pela classe trabalhadora dos "nossos iguais", para que partilhassem a
renda nacional distribuída pela sociedade como estrutura de saúde, escolas, seguridade social,
transportes, habitações, empregos, ou seja um Estado Democrático efetivamente, socialista.
Com tais argumentos conquistaram a chamada "Liga dos Justos" transformando-a em "Movimento
Comunista". A visão romântica dos humanistas era substituída pelo materialismo científico.(2
Este foi o primeiro passo para dar início ao propósito revolucionário da Revolução Soviética que
disseminou a luta mundial pelo socialismo e a formação do que Che Guevara chamou "homem
novo", reconhecendo que a Revolução em Cuba criara condições para que viesse a existir em
um futuro mais próximo. Portanto um ideal a ser trabalhado pelos povos de todo o planeta.(3
A evolução do pensamento revolucionário que sempre existiu entre os homens e mulheres desde
os primórdios da História da Humanidade, deu o passo científico ha 200 anos com os trabalhos de
Marx e Engels e seguiu com o desencadear de processos revolucionários que ficaram assinalados
pela Revolução Russa em 1917 e a formação de países que conservaram o sistema socialista -
China, Vietnam, Laos, Coreia do Norte e Cuba - e têm suportado as arremetidas permanentes do
imperialismo a partir dos Estados Unidos, Israel e os países da Europa que se uniram em torno da
NATO e invadem países que tentam alcançar a soberania nacional através do desenvolvimento
das riquezas dos seus territórios inclusive com a formação técnica e social do seu povo.
Cada povo tem a sua história e absorveu uma cultura específica, que definem as condições de
luta que o processo revolucionário exige face à permanente pressão do sistema capitalista e da
agressão imperialista. As novas gerações têm um árduo trabalho de formação para contribuírem
com o lado honrado da história. Os seus pais e avós têm o dever de manter as condições éticas
da educação familiar e social evitando e denunciando a perversão imposta pelo imperialismo
aos órgãos de comunicação social que tentam, de todas as maneiras, alienar as populações para
que se tornem egoístas e defensores de privilégios individuais que sustentam uma elite
exploradora, perversa e criminosa como a que se vê hoje liderada por chefes de governo como
Trump, Nathanyahu e Bolsonaro.

Zillah Branco
02/02/2019

Notas:
1 cit. in Buonicore, A., "Uma redação do estudante Karl Marx", (Portal Vermelho, 05/05/2018)
2 Lenine, V.I. "Breve nota biográfica" (portal Vermelho13/05/1918)
3 Guevara, Ernesto, in "El socialismo y el hombre en Cuba" (1965)

Um comentário:

  1. E a nós, Zilah, o que nos aconteceu? Nós, pais e avós dos que agora se deixam submeter à escravidão sem sequer o suspeitarem, como pudémos falhar tanto?

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